08 maio 2010

O dia que Júpiter encontrou Saturno

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 Foi a primeira pessoa que viu quando entrou. Tão bonito que ela baixou os olhos, sem querer querendo que ele também a tivesse visto. Deram-lhe um copo de plástico com vodka, gelo e uma casquinha de limão. Ela triturou a casquinha entre os dentes, mexendo o gelo com a ponta do indicador, sem beber. Com a movimentação dos outros, levantando o tempo todo para dançar rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e baseados, devagarinho conquistou uma cadeira de junco junto a janela. A noite clara lá fora estendida sobre Henrique Schaumann, a avenida poncho & conga, riu sozinha. Ria sozinha quase o tempo todo, uma moça magra querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz. Molhou os lábios na vodka tomando coragem de olhar para ele, um moço queimado de sol e calças brancas com a barra descosturada. Baixou outra vez os olhos, embora morena também, e suspirou soltando os ombros, coluna amoldando-se ao junco da cadeira. Só porque era sábado e não ficaria, desta vez não, parada entre o som, a televisão e o livro, atenta ao telefone silencioso. Sorriu olhando em volta, muito bem, parabéns, aqui estamos.

Não que estivesse triste, só não sentia mais nada.

 Levemente, para não chamar atenção de ninguém, girou o busto sobre a cintura, apoiando o cotovelo direito sobre o peitoril da janela. Debruçou o rosto na palma da mão, os cabelos lisos caíram sobre o rosto. para afastá-los, ela levantou a cabeça, e então viu o céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em aquarela, estatizada feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia mais nada, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco parada assim, meio remota, o moço das calças brancas veio se aproximando sem que ela percebesse.

 Parado ao lado dela, vistos de dentro, os dois pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros procurando bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha.

 E de repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every dau, every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente endurecidos dos moço. As memórias que cada um guardava, e eram tantas, transpareceram tão nitidamente nos olhos que ela imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.

 - Você gosta de estrelas?
 - Gosto. Você também?
 - Também. Você está olhando a lua?
 - Quase cheia. Em Virgem.
 - Amanhã faz conjunção com Júpiter.
 - Com Saturno também.
 - Isso é bom?
 - Eu não sei. Deve ser.
 - É sim. Bom encontrar você.
 - Também acho.

 (Silêncio)

 - Você gosta de Júpiter?
 - Gosto. Na verdade "desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra".
 - Que é isso?
 - Um poema de um menino que vai morrer.
 - Como é que você sabe?
 - Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.

 (Silêncio)

 - Você tem um cigarro?
 - Estou tentando parar de fumar.
 - Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
 - Você tem uma coisa nas mãos agora.
 - Eu?
 - Eu.

 (Silêncio)

 - Como é que você sabe?
 - O quê?
 - Que o menino vai se matar.
 - Sei de muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.
 - Eu não sei nada.
 - Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.
 - Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.
 - Ninguém compreende.
 - Às vezes sim. Eu te ensino.
 - Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também.
 - Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?

 (Silêncio)

 - Você tomou alguma coisa?
 - O quê?
 - Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.
 - Não tomei nada. Não tomo mais nada.
 - Nem eu. Já tomei tudo.
 - Tudo?
 - Cogumelos têm parte com o diabo.
 - O ópio aperfeiçoa o real
 - Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.

 (Silêncio)

 - Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.
 - Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.
 - Alguma coisa se perdeu.
 - Onde fomos? Onde ficamos?
 - Alguma coisa se encontrou.
 - E aqueles guizos?
 - E aquelas fitas?
 - O sol já foi embora.
 - A estrada escureceu.
 - Mas navegamos.
 - Sim. Onde está o Norte?
 - Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.

 (Silêncio)

 - Você é de Virgem?
 - Sou. E você, de Capricórnio?
 - Sou. Eu sabia.
 - Eu sabia também.
 - Combinamos: terra.
 - Sim. Combinamos.

 (Silêncio)

 - Amanhã vou embora para Paris.
 - Amanhã vou embora para Natal.
 - Eu te mando um cartão de lá.
 - Eu te mando um cartão de lá.
 - No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.
 - No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.

 (Silêncio)

 - Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada do meu lado, olhando de perfil.
 - Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.
 - Vamos nos ver?
 - No teu chá. No meu chá.

 (Silêncio)

 - Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
 - Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
 - Vou te escrever carta e não te mandar.
 - Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
 - Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
 - Vou ver Saturno e me lembrar de você.
 - Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
 - O tempo não existe.
 - O tempo existe, sim, e devora.
 - Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
 - Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
 - E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.

 (Silêncio)

 - Mas não seria natural.
 - Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
 - Natural é encontrar. Natural é perder.
 - Linhas paralelas se encontram no infinito.
 - O infinito não acaba. O infinito é nunca.
 - Ou sempre.

 (Silêncio)

 - Tudo isso é muito abstrato. Está tocando "Kiss, kiss, kiss". Por que você não me convida para dormirmos juntos.
 - Você quer dormir comigo?
 - Não.
 - Porque não é preciso?
 - Porque não é preciso.

 (Silêncio)

 - Me beija.
 - Te beijo.

 Foi a última pessoa que viu ao sair. Tão bonita que ele baixou os olhos, sem saber sabendo que ela também o tinha visto. Desceu pelo elevador, a chave do carro na mão. Rodou a chave entre os dedos, depois mordeu leve a ponta metálica, amarga. Os olhos fixos nos andares que passavam, sem prestar atenção nos outros que assoavam narizes ou pingavam colírios. Devagarinho, conquistou o espaço junto à porta. Os ruídos coados de festas e comandos da madrugada nos outros apartamentos, festas pelas frestas, riu sozinho. Ria sozinho quase sempre, um moço queimado de sol, com a barra branca das calças descosturadas, querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz.

 Mordeu a unha junto com a chave, lembrando dela, uma moça magra de cabelos lisos junto à janela. Baixou outra vez os olhos, embora magro também. E suspirou soltando os ombros, pés inseguros comprimindo o piso instável do elevador. Só porque era sábado, porque estava indo embora, porque as malas restavam sem fazer e o telefone tocava sem parar. Sorriu olhando em volta.

Não que estivesse triste, só não compreendia o que estava sentindo.

 Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, apertou os dedos da mão direita na porta aberta do elevador e atravessou o saguão de lado, saindo para a rua. Apoiou-se no poste da esquina, o vento esvoaçando os cabelos, e para evitá-lo ele então levantou a cabeça e viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Visto assim parecia não um moço vivendo, mas pintado num óleo de Gregório Gruber, tão nítido estava ressaltado contra o fundo da avenida, e assim estava, mas sem compreender, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco, a moça debruçou-sena janela lá em cima e gritou alguma coisa que ele não chegou a ouvir. Parado longe dela, a moça visível apenas da cintura para cima parecia um fantoche de luva, manipulado por alguém escondido, o moço no poste agitando a cabeça, uma marionete de fios, manipulada por alguém escondido.

 De repente um carro freou atrás dele, o rádio gritando "se Deus quiser, um dia acabo voando". Na cabeça dele soaram cinco tiros. De onde estava, não conseguiria ver os olhos da moça. De onde estava, a moça não conseguiria ver os olhos dele. Mas as memórias de cada um eram tantas que ela imediatamente entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante em que ele atravessou a avenida sem olhar para trás.

Rabiscado por  ­­Sah-p às 23:06

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